Chega de Embalar a Saudade


As comemorações dos 50 anos da bossa nova têm prestado justas homenagens e informado os mais jovens do interesse do movimento, mas têm também enfadado seus ex-participantes e especialistas com a onda de mitificações e solicitações própria desses momentos. Em entrevista recente publicada pela Folha (07/07/08), o músico João Donato chegou a dizer: “Eu não agüento mais falar de bossa nova. Eu gosto é de jazz.”

Como pode um movimento que veio para combater os excessos cancionais de uma época soar agora como excessivo aos ouvidos de alguns de seus criadores e mesmo a uma parcela do público?

A bossa nova, centrada na figura de João Gilberto, promoveu realmente uma espécie de decantação na nossa música de consumo da década de 1950. Eliminou ou atenuou todos os recursos que lhe pareciam desnecessários, chegando a uma espécie de canção essencial, livre de exorbitâncias. Diante do padrão impostado dos cantores de samba-canção, ela apresentou um volume de voz bem próximo da fala cotidiana. Diante dos vastos contornos melódicos das músicas românticas hegemônicas, ela sugeriu a drástica redução das curvas, compensando-as com acordes dissonantes. Nesse sentido, o caminho harmônico substituiu em parte o caminho melódico sem perder a força emotiva. Diante do complexo percussivo que compõe a ala da bateria de uma escola de samba, ela se ateve principalmente ao contratempo do tamborim . Diante do jazz, gênero que encantou toda aquela geração de músicos, a bossa nova acolheu a harmonia, mas desprezou o improviso – instrumental ou vocal – que lhe parecia afastar-se demais do formato cancional implantado no Brasil desde os anos de 1920.

Mesmo a letra da bossa nova sofreu sensível atenuação retórica e temática, justamente para debelar o tom pseudoparnasiano que predominava nas canções de amor daquela época. No afã de abrandar os assuntos tratados, os letristas chegavam a infantilizar seus conteúdos, falando, muitas vezes, de “barquinho”, “bolinha de sabão”, “pato”, “lobo mau”, “trenzinho”, “bim bom” etc. Mas, independentemente desses casos extremos, a meta era a criação de letras em torno da temática “o amor, o sorriso e a flor”, que virou título de um dos discos seminais do movimento. O que passasse disso já era exagero.

João Gilberto, o maior mentor dessa triagem estética, tinha como principal referência os sambas-sambas das décadas anteriores, cujas melodias e letras limitavam-se a evocar o famoso ritmo, enaltecendo ora diretamente o gênero, ora seus símbolos imediatos, como a baiana, a mulata, a ginga, o pandeiro, o violão etc. Nessas canções, enquanto a melodia executava as divisões típicas do samba, a letra comentava os seus efeitos nos corpos dos personagens. Podemos pensar em “Samba da Minha Terra”, “Falsa Baiana”, “Morena Boca de Ouro”, “Acontece Que Eu Sou Baiano”, “A Vizinha do Lado”, todas elas composições muito mais influentes na bossa nova que o imenso repertório do jazz norte-americano.

Todos conhecemos bem a história do movimento. Houve uma fase de intervenção intensa na cultura brasileira que durou em torno de cinco anos. No final desse período, já tínhamos outro panorama cancional: João Gilberto e Tom Jobim tinham se mudado para os EUA, enquanto boa parte dos demais compositores se engajava na luta contra a ditadura militar que dera o golpe em 1964. Já não havia mais clima para o amor nem para o sorriso e muito menos para a flor. A ordem era o combate por meio das canções, das carrancas sérias e, em casos extremos, até com a substituição das flores por armas. Formava-se uma espécie de partido musical, a MMPB (Moderna Música Popular Brasileira), que atuaria nos festivais da canção e se oporia à descompromissada jovem guarda e, mais tarde, aos “alienados” tropicalistas.

Evidente que as novas funções musicais exigiam dos artistas uma retórica e um engajamento ideológico totalmente incompatíveis com o projeto bossa-novista. A leveza sonora e poética sucumbiu diante do peso político das composições militantes que, carregadas de mensagens, recobraram o excesso semântico, agora numa linha bem distante das juras amorosas dos anos de 1940 e 1950. Desde então, não existe mais a bossa nova “intensa”, aquela que interveio com uma proposta clara de lapidação de nossa música de consumo e cujo repertório estava totalmente a serviço de si mesma.

Ficou, porém, a bossa nova “extensa”. Esta se infiltrou na dicção de numerosos artistas que entraram em cena a partir da década de 1960, às vezes no modo de tocar violão (Chico Buarque, Paulinho da Viola e Gilberto Gil, em sua primeira fase), às vezes na emissão do canto próxima a da linguagem oral (fase inicial de Roberto Carlos e de Gal Costa, Nara Leão, Rita Lee, Adriana Calcanhoto, Fernanda Takai) e, principalmente, nos gestos de triagem sonora promovidos por artistas identificados com o som volumoso. Podemos citar Cazuza, mas também todos os participantes do projeto “acústico” lançado pela MTV brasileira. Gilberto Gil, Titãs, Jorge Benjor, Lulu Santos, entre outros, tiveram seus momentos bossa-nova ao mostrarem ao público suas canções em estado quase puro.

É essa a bossa nova, já impregnada em nossa cultura musical, que desempenha funções indispensáveis na decantação do rico repertório brasileiro. É essa a bossa nova que faz contraponto com as sucessivas misturas de gêneros e estilos que hoje viraram moda no mundo das canções. O gesto de mistura, procedente do tropicalismo, é crucial para a fecundidade artística, mas só atinge o seu melhor rendimento quando coexiste ou se alterna com o gesto de triagem herdado de João Gilberto. Em outras palavras, precisamos da mistura das diferentes dicções para mantermos o vigor da canção brasileira, mas precisamos também das triagens periódicas que nos levam ao âmago das composições e dos estilos.

Mas os processos de assimilação ao longo do tempo não merecem comemoração nem são reconhecidos com facilidade. Não há como celebrar a bossa nova inerente às canções produzidas nos nossos dias nem mesmo a bossa nova presente na criação atual de representantes do movimento, como João Donato, Marcos Valle, Roberto Menescal ou mesmo João Gilberto (que vem, aliás, aperfeiçoando o seu canto em níveis impensáveis à época do surgimento da bossa). Esses artistas agradeceriam bem mais se o interesse dos ouvintes fosse pelas obras que realizam hoje.

Acontece que só sabemos comemorar datas pontuais ou períodos de intervenção que demarcam rupturas históricas. Por isso, sempre festejamos as mesmas músicas, os mesmos fatos e os mesmos símbolos. Realmente, às vezes cansa!